“A bailarina” de Cecília Meireles no contexto do Maio Laranja, por Luzia Almeida
'É apenas uma criança: seu mundo é sua casa, sua mãe, seu pai, o mano e o gato Frajola'
“Esta menina / tão pequenina / quer ser bailarina. / Não conhece nem dó nem ré / mas sabe ficar na ponta do pé”. O poema “A bailarina”, de Cecília Meireles, convida-nos a pensar na Campanha Maio Laranja e em sua proposta de conscientização sobre o abuso infantil e sobre os desafios para o liquidar esse mal enfrentado por tantas crianças que querem ser bailarinas, professoras, médicas, advogadas, engenheiras, veterinárias, nutricionistas, etc. Querer ser alguém na vida já começa na infância: cabe à sociedade assegurar o direito de tornar-se. Mas, como?!... São tantos abusadores à solta. O abuso sexual é um rompimento: a infância passa a ser uma fase perdida, roubada, destruída. A infância perde a noção de brinquedos e de parques e aprende as cores das paredes dos consultórios.
A menina, de Cecília, que quer ser bailarina, “Não conhece nem mi nem fá / mas inclina o corpo para cá e para lá”. Ela não conhece muita coisa na vida. Esta menina “tão pequenina” está com o corpo e a mente em formação. Ela não tem ainda noção de desejos sexuais. Não sabe quase nada de seu próprio corpo, mal entende porque sua mãe diz que “Ninguém pode tocá-la aqui. Ninguém, viu!”. E a mãe dela repete esse “Ninguém pode tocá-la!”, mas ela ainda não sabe o sentido dessa fala que se repete quase todo dia. Não sabe dos horrores da sociedade, nada sabe de perversão sexual e de pedofilia. É apenas uma criança: seu mundo é sua casa, sua mãe, seu pai, o mano e o gato Frajola.
Assim, ela “Roda, roda, roda com os bracinhos no ar / e não fica tonta nem sai do lugar”. Tudo pra ela é uma brincadeira, nada sabe de boletos e da prestação do carro que vence dia dez. Não sabe nada da bandeira da conta de luz e não entendeu direito esse negócio do golpe da maquininha. Ouviu alguma coisa de “maquininha”: ela já iria prestar atenção, mas o Frajola entrou na cozinha e ela correu e foi abraçá-lo. Esta menina precisa de proteção porque existe um inimigo invisível a rondá-la. E os pais não desconfiam de nada. O inimigo tem estratégias e a menina já sentiu algo: faíscas saindo dos olhos dele, mas em seu mundo de criança não encontrou outras faíscas para comparar e ela não sabe fazer diferença entre desejos legítimos e taras. Não sabe que há uma mente tenebrosa que trabalha contra ela. “Contra” é uma palavra que nem existe ainda porque tudo é carinho e suco de laranja. A mãe, que é tão cuidadosa, nem permite que ela beba refrigerante. Mas, o inimigo é invisível, ele não é feito de açúcar; é feito de maldade. É astuto como uma serpente e sorri, aperta a mão do pai, abraça a mãe, e pega a menina e a põe no colo. Ele tem máscara de amigo, mas é pior que o diabetes. E a cegueira dos pais é causada pela doce confiança que depositam nele. E, pior: às vezes, o inimigo é o próprio pai, outras vezes é o padrasto, o padrinho, o tio, o primo etc. Como é que se protege uma criança dos parentes? Ou do religioso que fala de amor? Como proteger meninas e meninos de adultos “confiáveis”? Eis uma pergunta perturbadora.
“Esta menina, / tão pequenina / quer ser bailarina. / Mas depois esquece todas as danças, e também quer dormir como todas crianças”. Numa sociedade imoral e perniciosa, o sono tranquilo e sossegado das meninas e dos meninos é quase um sonho e lembra-me o brado de Castro Alves: “Que cena infame e vil!... Meu Deus! meu Deus! Que horror!”. Concede-nos, Senhor, a cura dessa chaga social para que nossas crianças possam dormir e viver em paz!...
Texto por Luzia Almeida
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Sobre o autor
Luzia Almeida
Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação
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