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Poesia, intertextualidade e vida, por Luzia Almeida

Em vez do fim, a poesia abre novas páginas para quem busca sentido na dor. (Foto: Pixabay)

Publicado em 13/06/2025

          “Ismália”, de Alphonsus de Guimaraens, é um dos poemas mais significativos da literatura brasileira. Publicado na obra “Pastoral aos crentes do amor e da morte” em 1923, situado na escola simbolista, manifesta a mais terrível dor humana: a loucura.

          “Quando Ismália enlouqueceu,

          Pôs-se na torre a sonhar...

          Viu uma lua no céu,

          Viu outra lua no mar.”

          Mesmo com toda a musicalidade de que é capaz um poema simbolista, o sentido da loucura não se perde na antítese céu e mar. E, não apenas a loucura, a presença dolorosa da morte ocorre num desvario, num processo de sedução que chega ao suicídio: recurso metafórico de acordo com o modelo ultrarromântico: “As asas que Deus lhe deu / Ruflaram de par em par... / Sua alma subiu ao céu, / Seu corpo desceu ao mar...”. Suicídio é uma palavra tonelada. Mas, como a literatura também é catarse, fecho a escola simbolista e abro a modernidade na proposta de Cecília Meireles reinventando a vida e iluminando o planeta: “Anda o sol pelas campinas / e passeia a mão dourada”. Como se Meireles, de repente, lamentasse a visão da moça na torre — isso é compaixão — e acionasse seus pares para uma intertextualidade com intervenção poética a favor da vida, do sol, da campina...

           A literatura convoca os sentidos para resolver problemas existenciais. Considerando a fragilidade de “Ismália” e a proposta de reinventar a vida de Meireles, num projeto de intertextualidade, livre de algemas: “Vem a lua, retira / as algemas dos meus braços”, temos o poema de Alphonsus de Guimaraens ressignificado num contexto atual para o bem e para a capacitação de quem pretender desviar-se da dor a partir da prosa poética:

          Amanhã

          Ela não sabia o que era hoje, somente amanhã se vestiria toda de luar e como Ismália subiria numa torre para compensar sua existência de espera e, se sua ignorância se perdia num tempo de hoje, não havia problema: o orvalho do amanhã traria notícia de um novo tempo para longe do perigo.

          Se era dia ou noite, ela não sabia. Vivia apenas.

          E o clarão da lua marcava as águas do seu rio.

          Muitas águas!...

          Se era racional sua existência? Talvez! Porque sistematicamente ela olhava o relógio e entre o aqui e o depois ela se aquietava quase inteira, mas sabia que havia mais que relógios. Assim o tempo se espreguiçava numa cadeira de balanço. E relógios...

          A lua de prata, por conta de tempos terríveis, atravessada pelo sol, depositou um lírio no decote dela pra disfarçar o seu riso: meio tonto, meio bobo, todo meio. O lírio tentava chamar sua atenção deveras. Mas, embora lírio e ela-flor… ainda assim não faziam jardim porque o outono não arredava o pé.

          Somente uma torre e a antítese existencial faziam-na pensar num deleite infantil. Restos de lembranças de uma infância que vinha se estabelecendo novamente em sua vida.

          E, para descansar de tantas marcas d’água, ela abriu um livro.

          As páginas do livro atualizaram os relógios e o futuro se tornou presente porque a queda foi vencida: ela era Ismália, mas agora não havia torre, só livros.

          “Porque a vida, a vida, a vida,

           a vida só é possível

           reinventada.”

 

 

 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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