Os ombros de Drummond, por Luzia Almeida
Os brasileiros carregam o peso do mundo e seguem em frente, resistindo com poesia e força
Um poema inesquecível do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade é “Os ombros suportam o mundo”. Um título formado por um período simples com sujeito simples (Os ombros) e predicado verbal (suportam o mundo). Mas a metonímia neste período acaba com a gente. “Os ombros” são partes de um todo: metonímia extremamente dolorida se considerarmos o eu lírico essencialmente brasileiro acompanhado do verbo “suportar”. Verbos, se não são de ligação, são sempre significativos!... Mas, vejamos a primeira estrofe pra ver se melhora alguma coisa: “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração, / Tempo em que não se diz mais: meu amor”. Observem que é um tempo mau marcado pela ausência de espanto, de surpresa e de amor. Quem aguentaria um tempo desses? O brasileiro!...
A inteligência e a sensibilidade do poeta na elaboração deste poema implicam reflexão. Esse tempo mencionado pelo eu lírico está maculado pela Segunda Guerra Mundial e as dores provenientes deste absurdo (toda guerra é um absurdo – não encontro palavra que abrigue toda a treva e toda a ganância que articulam uma guerra: sei que há neste “absurdo” muito eufemismo). Sim, existe uma mancha que cobre a sociedade e a torna seca e árida: “porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram. / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco”. Nós, os brasileiros, sabemos exatamente o que ele está sentindo. Há um cheiro de pólvora no ar, uma visão de criança chorando e um estado de viuvez nos olhos das mulheres. Toda essa agressividade ele transporta por linhas poéticas e despeja toda a sua indignação numa página de 1940 e no livro “Sentimento do mundo”. Esse sentimento era tão próximo que chegou ao ponto de atravessá-lo de um modo tão veemente que ele se partiu em palavras... todas as palavras de que o poeta necessitava estavam prenhes de pudor, mas algumas escaparam assim mesmo. E por que escaparam? Para que o poema acontecesse.
“As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios / provam apenas que a vida prossegue”. Mas, que vida? Guerra, fome e discussões são palavras que não combinam com vida. Sim, pode-se dizer que são palavras de morte: “e nem todos se libertaram ainda”. Como é que ele consegue provar que a vida prossegue numa tríade de fracassos. Não, meu querido! A vida precisa ser reinventada como disse a Cecília. Esse tempo que nos apresenta é o mesmo de sempre, é o de ontem e é o de hoje. É verdade que sempre houve guerras, fomes e discussões... estou batendo a cabeça com essa vida que mencionas, porque “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem”. Uma ordem natural é claro! Como a vida das grandes árvores que são bonitas, mas estão enraizadas e não cedem ao movimento, embora seus galhos brinquem com o vento. Vida no sentido biológico: nascer, crescer, reproduzir-se e morrer. Eis o ciclo! E a velhice? “Pouca importa venha a velhice, que é a velhice?”. Eu não sei, mas uma coisa posso afirmar: o teu poema não é estranho porque congrega todas as digitais daqueles que sofrem e suportam e seguem em frente como soldados cansados do peso do fuzil. E, além do fuzil, há o preço do leite, da carne, do aluguel... Os ombros dos brasileiros têm o couro curtido e é por isso que já nem sentem mais o arder do sol. O sol e as dores de viver têm o mesmo peso que “a mão de uma criança”.
“E as mãos tecem apenas o rude trabalho” e poderiam escrever canções de amor.
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Sobre o autor
Luzia Almeida
Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação
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