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O verbo cantar na perspectiva do eu lírico em “Motivo” de Cecília Meireles, por Luzia Almeida

'Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou se me desfaço, — não sei, não sei'. (Foto: Divulgação)

Publicado em 07/06/2024

 

          O poema “Motivo” de Cecília Meireles é uma das maiores representações do ser poeta e do ser humano. Embora o poema comece com a primeira pessoa do singular “eu”, não há indícios de que o significado do verbo cantar esteja no sentido denotativo. Cantar porque “o instante existe” não produz som, porque “o instante existe” para todos e nem todos podem cantar: “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem triste: / sou poeta”. O texto começa com lembranças de tempo, de vida (“completa”) e de sentimentos que se anulam: “Não sou alegre nem triste”. A posição do eu lírico supera sentimentos que se opõem. Nas linhas do poema, o eu lírico apresenta-se “não sou”, mas em seguida afirma “sou”. É paradoxal. Pura função emotiva da linguagem!

          Existe neste texto uma complexidade humana, um labirinto de emoções e um soluço de letras apresentado na segunda estrofe: “Irmão das coisas fugidias, / não sinto gozo nem tormento. / Atravesso noites e dias / no vento”. Tudo o que é efêmero passa pelo sangue, desemboca no grafite e deságua na página da poetisa. Sangue e grafite que se dissolvem ao sabor do vento e que traduzem um cenário que é barco parado com preguiça de crepúsculo. O ser poeta de Cecília Meireles inunda nossos olhos de todas as lágrimas covardes que guardamos e que aspiramos a um dia libertá-las. Mas há poucos modos de libertar a dor e o sentimento que imperam no oceano do coração.

          Ferreira Gullar dialoga com Meireles neste viés de inundação de sentimento que, desmascarado pela palavra, liberta-nos e nos atualiza nas antíteses de que somos vítimas: “Uma parte de mim / é todo mundo; / outra parte é ninguém: fundo sem fundo”. Esse amanhecer de palavras supõe um esclarecimento quanto aos sentimentos mais profundos do fazer poético, que é a manifestação de quem somos. Somos complexos e há definições nessa linha; nessa bifurcação inédita que somente a poesia pode seguir. Esse lampejo de ideias e de tolerâncias sentimentais gritam em brados sobre o que somos e para que somos. Ela diz: "Se desmorono ou se edifico, / se permaneço ou se me desfaço, / — não sei, não sei". Não sei se fico / ou passo. Nessa mesma toada, Ferreira Gullar responde: “Uma parte de mim / é multidão: / outra parte estranheza / e solidão”.

          Diálogo poético e humano, mas atravessado da majestade da palavra: “Sei que canto. E a canção é tudo. / Tem sangue eterno e asa ritmada. / E um dia sei que estarei mudo: / Mais nada”. E Ferreira Gullar concorda: “Uma parte de mim / é só vertigem; / outra parte / linguagem”. Há um quebranto de palavras nos poemas e um tipo de declinação que nem o latim explica. Cada eu lírico escortina o seu domínio da palavra nas estrofes e o apresenta como animal pronto para ser sacrificado. 

           A musicalidade que desabrocha nos poemas anuncia um tipo de libertação de “eus” de “nós” de “todo mundo” que sente a dor da solidão e da linguagem. A musicalidade do “canto” marca nossa dependência e nosso reino na articulação das ideias que ligadas ao coração conspiram contra a ignorância. “Eu canto” significa eu escrevo. Escrever é um privilégio intelectual e escrever poemas é ir além do “Cabo Bojador”.

          Cecília Meireles diz “eu canto”, mas, na verdade ela escreve do mesmo modo que Ferreira Gullar e a arte da escrita é a arte da canção. Será?

 

 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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