O plano de Geir Campos, por Luzia Almeida
A poesia provoca a reflexão até no café da manhã
O ser humano pode se expressar de várias maneiras. Pode ser expressar de modo emotivo, intelectual, artístico... O ser humano ao se expressar pode apontar o mal e o torto que há na sociedade: esta forma de expressão é louvável à medida que vai lançando luz aquilo que foi encoberto pelas trevas da ganância e da corrupção. Nesse sentido, eu convido Geir Campos e Ferreira Gullar para uma conversa inteligente e cheia de intenções.
Começaremos com o poema “Tarefa” de Geir Campos: uma conduta nobre e altruísta que nos convoca a pensar no outro de modo empático: “Morder o fruto amargo e não cuspir / mas avisar os outros quanto é amargo, / cumprir o trato injusto e não falhar / mas avisar aos outros quanto é injusto, / sofrer o esquema falso e não ceder / mas avisar aos outros quanto é falso”. O significado de “avisar” nestes versos ultrapassa o dicionário em anos luz, porque não temos uma ação de “avisar” no sentido da informação, mas no sentido da prevenção. A ideia que me ocorre nestes primeiros versos é de um campo minado com um atalaia gritando: “Não andem por este caminho!”. O “fruto amargo”, o “trato injusto” e o “esquema falso” se espalham pela sociedade como erva daninha... é necessário que se admita a necessidade da poesia como forma de expressividade e prevenção do mal. O poeta é um atalaia e o poema um outdoor: eis as metáforas que rompem com a solidão de uma vida estéril e sem cor.
Assim, ainda considerando os atos sociais, temos uma construção que também é puro aviso no poema “O açúcar” de Ferreira Gullar, pois configura formas de decência na postura de quem não bloqueia a consciência numa manhã de sol: “O branco açúcar que adoçará o meu café / nesta manhã de Ipanema / não foi produzido por mim / nem surgiu dentro do açucareiro por milagre”. A história do açúcar do poeta é de trabalhadores que não podem desfrutar, como ele, de uma manhã de sol em Ipanema. Mas, quem são esses trabalhadores? “Em lugares distantes, onde não há hospital / Nem escola, / Homens que não sabem ler e morrem de fome / Aos 27 anos / Plantaram e colheram a cana / Que viraria açúcar. / Em usinas escuras, / Homens de vida amarga / E dura / Produziram este açúcar / Branco e puro”. Estes homens, como disse Geir Campos: morderam o fruto amargo e não cuspiram, mas não puderam avisar o quanto era amargo. Estes homens jamais tiveram o privilégio de aprender a ler. E jamais leram o poema “O açúcar” que eles mesmos plantaram no coração do poeta.
Somos atravessados por esses dois poemas. Somos atravessados na voz do eu lírico que se não se compadece de seus leitores. O “fruto amargo” de Geir Campos está refletido nas “usinas escuras” de Gullar e nos dão conta de uma sociedade viciada. A esperteza de uns e a ganância de outros nos convocam à reflexão sobre uma fronteira que delimita as classes sociais. O poeta pode até tomar o seu cafezinho, mas não é sem dores, não é sem constatar que ele mesmo usufrui do suor de muitos que nunca tiveram o privilégio das letras nem de um sol de Ipanema. A poesia não aplaca a consciência de ninguém. Ela aguça, perturba e lança dúvidas nas mentes adormecidas e naqueles que estão “muito bem, obrigado”.
A poesia perturba os olhos tão afeitos à contemplação de uma paisagem de litoral. É por isso que “quando em muitos a noção pulsar / — do amargo e injusto e falso por mudar — / então confiar à gente exausta o plano / de um mundo novo e muito mais humano”.
Texto por Luzia Almeida
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Sobre o autor
Luzia Almeida
Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação
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