Machado de Assis, figuras e Netflix, por Luzia Almeida
O excelente escritor brasileiro Machado de Assis escreveu grandes romances como “Dom Casmurro” e “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Em “Dom Casmurro”, ele se eternizou com “Capitu” e em “Memórias póstumas de Brás Cubas”, inaugurou a escola realista com os vícios da mulher e, deste modo, escapou da idealização feminina concebida pelos românticos. Todavia ele não parou nos romances: com os contos “Missa do Galo”, “O alienista”, “O espelho”, “A causa secreta”, “O caso da vara”, “O enfermeiro” e “A cartomante” ele assumiu o verde amarelo das letras e inaugurou a Netflix do século XIX.
Os contos de Machado de Assis são terríveis: o terror que estabelece a perversão percebe-se no personagem Fortunato e na sua “Causa secreta”: “E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata do rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer”. Perversão e sadismo que não se supunha em seres humanos. Será?
Em “Missa do galo” temos como tema o adultério explícito do escrivão Menezes que saía para ir ao teatro e retornava a casa somente na manhã seguinte: “Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Menezes trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana.”. Pra quem ainda não entendeu esta figura de linguagem, o eufemismo, é só observar a suavização do adultério nas palavras: “teatro”, “amores”, “senhora” e “dormia”. Menezes era uma figura!...
Ainda, considerando outro tema digno de uma Netflix da época, temos assassinatos a partir de um Vilela furioso em “A cartomante”: “Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo, sobre o Canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.”. Vilela desempenha o duplo papel de homicida e de feminicida na figura hiperbólica do macho preterido. Um absurdo sempre atual, infelizmente.
Damião não é homicida, é uma figura interessante no conto “O caso da vara”: uma metonímia incomum (uma substituição). O título seria “Um caso de deslealdade”, mas o Machado preferiu trocar deslealdade por vara. Problemas são assim: acontecem e muitas vezes somos postos a prova. Às vezes, triunfamos e às vezes, fracassamos como fracassou o Damião para a tristeza de Lucrécia que não concluiu sua tarefa porque se distraiu com o fugitivo do seminário. A vara é uma balança de caráter: Lucrécia sentiu o peso dessa balança: “Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou-se à marquesa, pegou na vara e entregou-a a sinhá Rita”. Pesado na balança como o rei Belsazar, Damião triunfou com a coroa da covardia e Lucrécia amargou o castigo da negligência porque entregou-se à comédia que ele havia improvisado.
No século XIX, Machado de Assis era a Netflix da hora. Na verdade, sem estúdios e sem cenários montados, ele dava conta do espetáculo com apenas caneta e papel: sem mensalidades e sem o colorido que seduz, ele tinha todos os temas capazes de instigar populações: tinha enredos e personagens. Ele tinha tudo, ele tinha a palavra.
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Sobre o autor
Luzia Almeida
Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação
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