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Literatura e denúncia social, por Luzia Almeida
Uma reflexão sobre a sociedade a partir da literatura francesa 'Germinal' de Zola

A literatura, como denúncia social, revela desigualdades e injustiças, expondo a luta de classes e a miséria humana através de narrativas impactantes. (Foto: Pixabay)

Publicado em 12/07/2024

       “Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e espessura de tinta, um homem caminhava sozinho pela estrada real que vai de Marchiennes a Montsou, dez quilômetros retos de calçamento cortando os campos de beterraba.” Assim começa o romance Germinal de Émile Zola publicado em 1884. Um começo sem qualquer anúncio da luta de classes que vai ser travada entre os trabalhadores das minas de carvão e seus patrões. Um começo que nem de longe indica a dor daqueles que viviam oprimidos com um salário minguado e péssimas condições de trabalho.

          A literatura, como denúncia social, analisa vários aspectos numa sociedade de qualquer época, uma vez que promove esclarecimentos sobre modos de trabalho relacionados à sobrevivência. Esclarece sobre salário e equidade, sobre governos e governados etc. A literatura põe uma lupa sobre as classes socias e investiga suas teias e as expõe em narrativas que nos constrangem a refletir questões que vão além do enredo.

          É o que acontece com o personagem Etienne Lantier ao chegar em Montsou no norte da França. Mais ainda: com o personagem Boa-Morte e todas as terríveis situações por que passou na mina de carvão e ainda espera completar sessenta anos para obter uma (pensão) aposentadoria de cento e oitenta francos. Etienne e Boa-Morte de um lado, seus patrões de outro, refletem esse desiquilíbrio social que apontam fome e fartura, miséria e conforto. Tais antíteses são possíveis porque estes conceitos são vividos pelos personagens e seus patrões num tempo de escola realista na França do século final do XIX.

          Antíteses a parte, é inquestionável a função denunciadora da literatura. Função revolucionária que organiza e convoca os sentidos do leitor numa sequência de fatos que culmina numa greve dos trabalhadores sem atingir o objetivo. Nesse sentido, a personagem Cecília é sacrificada por conta de sua representatividade social, de sua fartura, do branco do seu lindo rosto num contexto de miséria e escuridão de carvão. Os trabalhadores perdem com a greve e os patrões perdem Cecília. Não há vencedores, apenas vencidos. São todos vítimas de um sistema corrupto: tanto patrões, pela usura; quanto os trabalhadores pela miséria. Mas, Zola faz uma análise da situação da França no final do século XIX e quem ganha é o leitor ao deparar-se com esta (des)organização social.

          E, no que se refere ao Brasil... Sim, o Brasil não escapa dessa balança desiquilibrada, também poderia apontar um romance e Graciliano Ramos faria uma dupla com Zola, mas não o farei, embora haja terra seca, apontarei apenas o poema “O bicho” de Manuel Bandeira publicado no Rio de Janeiro em 1947 que descreve o Brasil da década de quarenta subjugado pela miséria:

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

          Este poema expõe a fome brasileira e nos atinge de um modo tão veemente que é impossível esquecer Bandeira: impossível esquecer essa metáfora vergonhosa: gente procurando comida no lixo. A metáfora do “bicho” desestabiliza uma nação que se pretende desenvolvida, uma vez que não há desenvolvimento sem equidade social. Onde há fome não há justiça social e onde não há justiça social não há “ordem e progresso”: apenas miséria e fartura.

 

 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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