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A Era do Côvado e a Construção do Conhecimento em “Infância” de Graciliano Ramos, por Luzia Almeida

A leitura é a aurora do conhecimento, mas métodos punitivos obscureceram essa luz no início do século XX. (Foto: Divulgação)

Publicado em 28/07/2024

  Pessoas há que aprenderam a ler apanhando. É lamentável!  A leitura é a aurora da construção do conhecimento. Aurora é palavra trissílaba, paroxítona e é uma metáfora: início das expectativas cognitivas do ser humano. Ler é amanhecer em letras. É sair de um nevoeiro noturno e navegar em direção a um norte ensolarado e sem fim. Quando a mente, ainda tenra e dócil diante do novo, é provocada por questionamentos como:  Quem é “Terteão”? É mister que haja uma resposta, mas não há resposta no romance “Infância” de Graciliano Ramos, publicado em 1945. Este romance tem a ousadia de revelar as dores e os tormentos do ensino das primeiras letras no início do século XX no Nordeste brasileiro.

          “À tarde pegava um côvado, levava-me para a sala de visitas — e a lição era tempestuosa. Se não visse o côvado, eu ainda poderia dizer qualquer coisa. Vendo-o, calava-me. Um pedaço de madeira, negro, pesado, de largura de quatro dedos”. O côvado era uma régua de medida, mas era também palmatória. E, embora fosse medida, era também instrumento de encolhimento pois estava longe de fomentar qualquer tipo de ensino e patrocinava a solidão linguística da espécie humana, uma espécie de treva que a luz do saber tem dificuldade de romper. A Era do Côvado também é raiz do IDEB e do PISA. É um tipo de ranço que perdura porque ainda não optaram pelo contracôvado e muitas crianças sofrem, não mais as dores, mas as negligências dos herdeiros dessa era obtusa.

          “Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém. Esse Terteão para mim era um homem [...] — Mocinha, quem é Terteão?” Mas ela também não sabia que a posição do pronome na frase — antes, no meio e depois do verbo — tem nomes (próclise, mesóclise e ênclise). Ninguém havia que pudesse explicar a gramática e, embora “Terteão” continuasse ferindo a ingenuidade e ignorância do menino, a explicação é simples: trata-se da colocação pronominal. O verbo “ter” no futuro com o pronome “te” no meio (ter-te-ão) é uma mesóclise. Assim, a construção do conhecimento estava comprometida pela falta de qualidade do material didático que estava fora do nível de aplicação e pela falta de qualificação da educadora, infelizmente, pois ela não conseguia dar explicações sobre o que ensinava. “Mocinha confessou honestamente que não conhecia Terteão. E eu fiquei triste, remoendo [...] novas decepções”.

          E se ficasse só nas decepções ainda seria uma civilização. A questão do ensino era uma barbárie intelectual pior do que “Ivo viu a uva”, a barbárie era real: “As pobres mãos inchavam, as palmas vermelhas, arroxeadas, os dedos grossos mal se movendo. Latejavam [...]. Era preciso erguê-las. Finda a tortura, sentava-me num banco da sala de jantar, estirava os braços em cima da mesa”. Era neste estado que ficava o menino depois da lição dada pelo próprio pai. A educação do Brasil, no início do século XX era desqualificada e inoperante. Aprender a ler e escrever neste contexto era quase um milagre por conta do terror das letras. Quem em sã consciência amaria as letras com as mãos inchadas e arroxeadas por conta do “D” ou do “T” que logravam pancadas com o côvado?

          Pitágoras disse: “Educai as crianças e não será preciso punir os homens”. Tem alguma coisa na educação brasileira que não bate com esta citação. O que será? Tem alguma coisa a ver com o verbo “punir” que é verbo de hierarquia.

 

 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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