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Meu peito ensaia uma canção antiga, por Luzia Almeida

Nada mais resta do que viver o hoje com saudades do amanhã que vem chegando como um passarinho treinando o primeiro canto (Foto: Freepik/ Reprodução) **Clique para ampliar

Publicado em 28/12/2023

Ainda há tempo de ensaiar... canções antigas são como lírios puros de perfeito algodão que poderiam cavar uma emoção mais forte em todas as pessoas. Uma emoção que levasse às lágrimas... um efeito purificador. Como o poema de Mário Quintana “Rua dos cataventos II”: Dorme, ruazinha... É tudo escuro... / E os meus passos, quem pode ouvi-los? / Dorme o teu sono sossegado e puro, / Com teus jardins tranquilos...”. Ruas sossegadas com jardins tranquilos são metonímias que refletem a paz que se almeja para um sono reparador. A paz externa é o primeiro plano, mas é preciso que o coração seja como o de uma criança: livre do todo peso de invejas e dissimulações para que na rua sossegada também se possa ouvir a flauta do anjo: “Em cima do meu telhado, / Pirulin lulin lulin, / Um anjo todo molhado, / Soluça no seu flautim” ... Esse Mário!...

Sim, meu peito ensaia uma canção antiga com letras cheias de ruas adormecidas e anjos flautistas, de manhãs douradas com o sol arrebatando o último orvalho, mas com delicadeza para não magoar os olhos que contemplam tamanha graça. É preciso ser sol, mas sem ousadia. Fazer tremer o orvalho da saudade na flor antes de levá-lo para sempre, porque a saudade é algo infinito como as marcas deixadas por ele: podem até ser invisíveis, mas procedem de uma existência fina que perdura na pétala que o acolheu.

Canções de pétalas repletas de ruas sossegadas, de anjos flautistas e manhãs carregadas de orvalho que façam adormecer todas as tristezas e frustações num sono eternamente azul e que lembre a calmaria do mar profundo. Mas que também fizesse despertar todos os sonhos largados na estrada da dúvida: não se pode caminhar sem a claridade da determinação... É quase janeiro e o sol não se faz de rogado. Ei-lo sempre presente neste universo lácteo a despertar as almas mais simples ante os projetos guardados. Que todas as gavetas possam fazer as merecidas devoluções!... e as vontades sejam novamente enchidas como balões de aniversário. O que estava guardado é como uma semente: precisa da terra escura e úmida para fazer brotar o verde negado pelas gavetas de armário. E o sol somente aguarda esse verde para nutri-lo.

Meu peito ensaia uma canção que se metaforiza num caminho entre lírios para andarmos de mãos dadas e, assim, com essa força, poderíamos abalar os cinzentos dias de falas infrutíferas de desamor. Poderíamos traçar um norte de encantamentos se usarmos a régua da ternura. O inabalável sempre procede de um alicerce de direitos e o amor é o maior de todos os deveres. O império deste substantivo conduz à vida, desta maneira: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” porque o amor é palavra-canção que habita junto “a correntes de águas”. Quem ama “no devido tempo dá o seu fruto” e protesta diante de toda fraude e manipulação. Diga “não” ao vilão e ao violão calado... a terra se enche de cores de todas as flores e é necessário que haja gratidão. A gratidão é como a música para quem tem um trabalho e este trabalho pode ser leve como um beija-flor.

Meu peito ensaia uma canção antiga porque não poderia ser diferente. Há tantas flores e as pessoas são quase azuis... Olhem para o céu e agradeçam a presença do sol: são milhares de luzes conectadas na claridade da manhã para lembrarmos que estamos vivos. Nada mais resta do que viver o hoje com saudades do amanhã que vem chegando como um passarinho treinando o primeiro canto. 
 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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