Salve(m) as Baleeiras - Uma homenagem à Rainha dos Mares, por Fernando Teixeira
A outrora pacata comunidade do bairro João Paulo, em tempos remotos caminho obrigatório dos que se dirigiam ao norte da ilha de Santa Catarina, viu-se rapidamente transformada, sendo ocupada por inúmeros condomínios residenciais de médio e alto padrão. Envolvido por uma avassaladora dinâmica de expansão da cidade, que muitas vezes desconsidera hábitos e costumes locais, esse tradicional núcleo ilhéu, que possui na pesca uma de suas mais reconhecidas atividades, tem resistido, com firmeza, às alterações a que tem sido constantemente submetido.
Essa que, sem dúvida, é uma das mais atraentes regiões de Florianópolis, cujo pôr do sol é pura poesia a encantar seus espectadores, abriga uma das mais fortes e atuantes colônias de pescadores de nossa ilha. Neste último fim de semana a localidade foi palco da “Festa Municipal das Baleeiras”. Também pudera, essa tradicional embarcação originalmente utilizada para a pesca da baleia, e que foi introduzida em nosso litoral por herança de imigrantes açorianos que para cá vieram na metade do século XVIII, ainda é empregada na lida diária dos bravos homens dessa comunidade em sua constante busca pelo sustento de suas famílias.
Organizada pela Associação dos Pescadores do João Paulo e Saco Grande, em parceria com o Projeto “Baleeira da Ilha” e com o apoio da Prefeitura Municipal, a festa contou com extensa programação e foi desenvolvida durante todo o sábado. Um passeio de baleeiras até as imediações da Ponte Hercílio Luz, retornando ao ponto de partida no trapiche do bairro João Paulo, abriu as festividades. Seguiram-se concursos com atividades ligadas à pesca, além de vários shows com artistas locais. Para os organizadores, o objetivo primordial do evento é chamar atenção de lideranças e da sociedade para a necessidade de preservação da baleeira.
O pôr do sol no Bairro João Paulo é de cinema (Foto Fernando Teixeira)
Como utiliza madeiras protegidas por lei, elas não vêm mais sendo construídas. Essa restrição também tem limitado a restauração das embarcações remanescentes. Além disso, constata-se facilmente que seus métodos de construção estão preservados apenas na memória dos poucos mestres artesãos, ainda vivos.
Comemorado oficialmente em 18 de dezembro, o Dia Municipal da Baleeira homenageia o nascimento de Alécio Heidenreich, tradicional construtor de baleeiras do Ribeirão da Ilha. Falecido em 2022, aos 93 anos, ele executou cerca de 80 exemplares dessa magnífica e segura embarcação.
Baleeira no trapiche do João Paulo à espera para mais um dia na lida da pesca (Fernando Teixeira)
O compositor e poeta Kalunga Heidenreich, filho do Mestre Alécio, é quem nos conta a seguir um pouco de sua experiência ao lado do pai em sua lida diária no estaleiro. De suas hábeis mãos e privilegiada mente, Kalunga via surgir, como num passe de mágica, essas maravilhas dos mares. Ao final, esse manezinho das letras e da poesia ainda nos brinda com uma de suas obras.
“O menino nasceu na beira da praia e passou a infância dentro de um rancho de baleeiras. Viu o Tio Cyde na velha bancada de madeira bruta, apontando pregos de cobre. E o “ajudava" a pintar as obras de arte que o Mestre Alécio produzia, sem entender direito o motivo de colaborar somente na primeira demão. Acompanhava o processo de construção da embarcação, passo a passo. Aos olhos do franzino manezinho parecia algo mágico. Desde então, ele carrega consigo cheiro de serragem e do cavaco entranhados na alma.
Baleiras reinam absolutas na praia do João Paulo
Em questão de poucos dias, via uma viga de peroba ser entalhada na enxó e se transformar em quilha. A seguir erguiam-se proa e popa. Então, o verdugo era passado entre uma e outra, sofrendo alterações, dependendo do projeto desejado. Seu pai lhe contara que antigamente as baleeiras eram mais estreitas e alongadas, favorecendo seu uso no remo ou à vela. Mas, com a chegada dos motores a diesel, elas passaram a ter um formato mais “bojudo”, aumentando consideravelmente a capacidade de carga. Ver o cavername alinhado – que lembrava as costelas de uma baleia de verdade – simplesmente o encantava.
Depois era arcar no fogo, colar, pregar, repuxar, calafetar e colocar massa em todas as tábuas do costado. Em seguida, o interior; bancos, forro e paneiros. Por fim, a instalação do motor, hélice, leme e... mais uma Rainha ganhava as águas tranquilas da baía sul, navegando majestosa rumo ao horizonte...
Senhor Alécio Heindenreich – Mestre Baleeiro em seu estaleiro no Ribeirão da Ilha (Foto Joel Pacheco)
Infelizmente, apesar de toda admiração e orgulho que sentia, o menino não aprendeu a técnica consagrada pelos seus antepassados. Seu pai acreditava que ser carpinteiro naval não lhe traria um futuro promissor e preferia que o guri estudasse para ser Doutor em Direito, Medicina ou Engenharia. Quem sabe, enxergava faltarem talento e determinação ao aprendiz. Talvez o advento das lanchas de fibra e barcos de alumínio, o encarecimento da matéria prima e a falta de valorização do trabalho artesanal também tenham sido decisivos para que ele assim pensasse.
O fato é que, depois de quase cem anos, o estaleiro não fabrica mais aquele que, um dia, foi o sonho de todo pescador. Agora produz ostras. Mas essa, já é outra história...”
“trouxe teu peixe
carreguei tua farinha
levei as bruxas de Cascaes até as índias
já fui...tempos atrás...e volto a ser Rainha (Kalunga Heidenreich)
Que os pescadores da Ilha de Santa Catarina possam, por muito tempo, sobreviver aos avanços da modernidade e que continuem a nos encantar com suas redes e coloridas embarcações, navegando majestosamente pelos lindos e abençoados recantos de nosso litoral. Vida longa às baleeiras! Vida longa aos pescadores!
Feliz Natal e um ótimo 2024!
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Sobre o autor
Fernando Teixeira
Formado em Arquitetura e Urbanismo (UFSC), mestre em Geociências e Doutor em Educação Científica e Tecnológica (UFSC), natural de Florianópolis. Atualmente tem se dedicado à fotografia.
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