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Essa armadura chamada dólmã, por André Vasconcelos

A origem do uniforme em si data do século XV, sendo os exércitos os primeiros a usarem esse tipo de indumentária, para diferenciá-los da população civil e, entre os uniformizados, separá-los em “castas” (Foto: Internet/ Reprodução) **Clique para ampliar

Publicado em 26/10/2023

Nunca frequentei grandes restaurantes na minha infância! Mas, nas poucas lembranças que carrego comigo, a figura do garçom simpático que nos atendia é sempre muito mais presente do que a do cozinheiro e da equipe que estava enclausurada na cozinha.

Na juventude, um tanto precoce, pois saí cedo de casa, tive a sorte de ter padrinhos e amigos que me apresentaram vários restaurantes estrelados, com estrelas Quatro Rodas, na época, porque, até então, para mim, Michelin era só uma marca de pneus com um boneco branco e gordinho que fazia sua propaganda!

Eram outros tempos, tempos em que os grandes salões elegantemente decorados eram guarnecidos com talheres de prata, louças com frisos de ouro onde a logomarca do restaurante tinha um destaque, e os copos de cristal lapidados não tinham como principal função mostrar todas as nuances visuais e olfativas do vinho... eram copos para decorar a mesa!

Quase um cálice sagrado em alusão ao Santo Graal!

E, um dos destaques destes baluartes da gastronomia, certamente era a figura empertigada dos garçons, com suas camisas brancas e engomadas, coletes impecáveis e a gravata borboleta que mais parecia um laço de pacote de presentes, sem falar nos sapatos de cromo alemão que reluziam como espelho.

Essas figuras, do garçom e do maitre, brilhavam ainda mais quando finalizavam o prato à mesa, como o camarão à provençal que fez a fama no restaurante La Paillote, no bairro do Ipiranga. Ou dos Crepes Suzette flambados no salão com mesas redondas com tolhas de linho, do Hotel Ca'd'Oro, na Rua Augusta.

Minhas referências são muito paulistanas, com uma pitada de carioquês, pois eram os lugares da minha juventude, onde descobri a arte de bem comer! Mas onde estavam os gênios que nos brindavam com todos aqueles cardápios? De onde vinham tantos sabores harmonizados, pontos perfeitos, texturas instigantes e apresentações que mais pareciam quadros de grandes pintores? A imagem do chefe de cozinha era quase um enigma.

Quando imaginava esse cozinheiro que comandava a cozinha, me vinha à mente a imagem do Sargento Cuca (Cookie na versão original), o cozinheiro do quartel Swampy, lar do personagem dos quadrinhos Recruta Zero. Cuca era reputado por sua incrível capacidade de tirar o apetite de todos com suas "iguarias".

Outra imagem de chef que pairava no meu subconsciente era do Chef Sueco, personagem do The Muppet Show, conhecido, principalmente, por suas excêntricas capacidades culinárias e sua forma enigmática de falar.

Já nos anos 1980, os chefs, ao menos no Brasil, começaram a sair da cozinha e tomar o seu valor diante dos clientes. Lembro da figura do saudoso amigo e mentor José Hugo Celidônio, no Clube Gourmet, passeando pelo salão com aquele casaco branco que eu, até então, não sabia que tinha um nome específico!

No mesmo uniforme, vi o Luciano Boseggia passar pelas mesas no impressionante salão do Fasano nos Jardins. Anos mais tarde, Bassoleil sorria uniformizado para os comensais no Roanne, restaurante icônico da família Toigros, em São Paulo. Nesses tempos, não imaginava que um dia aquele uniforme faria parte da minha vida, na verdade, nem imaginava que a cozinha seria um dia meu ofício.

Com o tempo, aquela vestimenta foi se popularizando, ao menos no meio dos que gostam de comer e beber bem. A dólmã, o uniforme do cozinheiro!

A origem do uniforme em si data do século XV, sendo os exércitos os primeiros a usarem esse tipo de indumentária, para diferenciá-los da população civil e, entre os uniformizados, separá-los em “castas”. Porém, no final da Idade Média, já havia citações do uso de aventais por cozinheiros nos Contos da Cantuária de Geoffrey Chaucer, como um uniforme.

O significado do uniforme traz em si o orgulho de fazer parte de algo especial, faz com que uma pessoa faça parte de um grupo específico, e demonstra o amor devotado ao ofício que este uniforme representa. A dólmã como conhecemos, apesar de ter sido originalmente inventada por monges franceses, nos monastérios onde eram feitas as melhores receitas da época, tem influência dos uniformes militares, assim como a hierarquia da cozinha com sua brigada sofreu influência militar.

Foi o chef Marie-Antoine (Antonin) Carême que tornou as peças mais funcionais, introduziu alguns elementos e modernizou essas vestimentas, levando em consideração que isso aconteceu no século XIX e esse padrão se mantem até hoje. O uso do dólmã de chef, à partir daí, começou a se popularizar.

Não só a aparência do uniforme do chef foi criado por Careme: esse cozinheiro dos reis criou a alta culinária como conhecemos e, no livro “Le Maitre d’Hotel Francais”, trouxe os esboços de dois chefs usando as jaquetas transpassadas, o avental, e o “toque blanche”, a touca do chef, criada também por ele.

Um século depois, esse padrão, tanto de uniformes quanto de hierarquia na cozinha, inspirou Auguste Escoffier a dar à gastronomia o status que tem hoje, além de mudar todo processo da cozinha francesa, organizando-a. Assim, apresentar-se bem era fundamental, afinal, França é sinônimo de moda e elegância.

Dolmã, a palavra, vem do turco dólman: túnica, gambuza ou farda, e a sua aparência, hoje, sofreu a influência não dos uniformes do exército Napoleônico, como relatam vários historiadores franceses, mas, sim, das túnicas czarinas da Rússia do século XIX, exército esse comandado pelos mesmos Czares para quem Careme cozinhou por um bom período de sua vida de cozinheiro.

A dólmã é a nossa armadura, a armadura dos cozinheiros! Deve ser honrada e laureada com nosso conhecimento, com estudo, com dedicação e respeito ao ofício de cozinhar! É o símbolo de uma profissão e não uma fantasia como muitos a usam. E que seja assim sempre: a dólmã representando a luta para que a profissão de cozinheiro seja reconhecida e respeitada, e não seja só uma roupa original para enfeitar fotos nas redes sociais. Um salve aos Cozinheiros e suas Dolmãs, assim mesmo: com C e D maiúsculos!

 

 

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Sobre o autor

André Vasconcelos

Cozinheiro raiz e autodidata, hoje no comando de sua Cozinha Singular Eventos e d'O Vilarejo Hospedaria e Gastronomia, onde insumos e técnicas são a base de cardápios originais e exclusivos... e aprendiz de escritor também!


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