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O dia da Mulher num “Quarto de despejo”, por Luzia Almeida

No Dia Internacional da Mulher, a foto Grito revela dissonâncias de um dia a dia marcado por duras realidades (foto:Pixabay)

Publicado em 08/03/2024
“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visitas com seus lustres de cristais, [...]. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. A obra “Quarto de despejo” da escritora mineira Carolina Maria de Jesus, publicada em 1960, remete-nos ao dia da mulher numa proposta reflexiva não somente a nível social, mas também a nível acadêmico. “Quarto de despejo” é a metáfora da favela e o enfrentamento dessa situação é o coração desta obra prima.
 
Enfrentar a miséria é para profissionais. A miséria descrita no diário de uma favelada constrange-nos a pensar na perversidade política (ou na ausência de vontade política) de um país tão rico. Catar papel é a senha da sobrevivência. Alimentar os filhos é uma tarefa diária e nos ensina o valor de uma mulher. Assim, podemos entender o significado do dia 8 de março e dos degraus de gêneros sociais estabelecidos. Entende- se que o protagonismo das mulheres brasileiras não pode acontecer por acaso, é promovido por elas mesmas: “Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando”. Ela sonhava com o básico: casa e comida. Mas, “a gente não quer só comida”, a gente quer as mesmas possibilidades de ascensão social e isto é justo e aplicável.
 
Quanto ao enfrentamento educacional, ela é um exemplo por excelência, porque mesmo sem formação acadêmica, escreveu um livro que já foi traduzido para 13 idiomas. E por quê? Porque ela é genial. Ela escreve tanto que sua competência literária supera a academia com o material de que dispõe. A gramática curva-se diante da expressividade que revela seu caráter literário e sua sensibilidade. Veja: “... A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido”. Fez mais que um vestido!... As estrelas do céu fizeram um pacto lírico e deram a ela o status de escritora num vestido de letras. Um vestido de escritora com todos os encantos possíveis e imagináveis de uma Cinderela brasileira.
 
O dia da mulher reveste-se de singular importância se considerarmos o verbo buscar, pois este verbo estabelece uma enumeração para as todas as mulheres, nestes termos: alimentos, emprego, equidade com relação a salários, formação acadêmica.
 
Nesse sentido, para entender o Brasil da favela precisamos ler Carolina: “Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife, despertei. Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama”, e fazer uma conexão com o poema “Às seis da tarde” de Marina Colasanti que também aborda esta questão social: “Às seis da tarde / as mulheres choravam / no banheiro. / [...] choravam porque o pranto subia / garganta acima / mesmo se os filhos cresciam / com boa saúde / se havia comida no fogo / e se o marido lhes dava / do bom / e do melhor / choravam [...] porque uma ânsia / uma dor / uma gastura / era só o que sobrava / dos seus sonhos”.
 
Essa pirâmide social apresentada pelas escritoras aponta degraus a alcançar. A literatura faz-se balança e pesa as dores das mulheres brasileiras com seus prantos escondidos e sonhos decepados. O grito por justiça social pode ser encontrado nas páginas engorduradas de uma catadora de papel. O grito que sai de um “Quarto de despejo” não pode ser ignorado.
 
Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em comunicação.

Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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