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'Traduzir-se” de Ferreira Gullar: a metáfora e a metonímia na formação do sujeito moderno

Há algo neste sistema humano que nos abrange numa fisiologia-metonímica harmônica — somos parte e somos todo — “Uma parte de mim / é todo mundo” (Imagem: Internet/ Reprodução) **Clique para ampliar

Publicado em 04/11/2023

A poesia sempre será um meio complexo de expressividade, porque na poesia a palavra foge do dicionário e perde seu status de patriota. A palavra-fuga, a palavra-clandestina, essa palavra revolucionária pode nos arrebatar a todos dependendo do grau de necessidade de fuga e da distância do dicionário. Exilada, exausta da corrida, a palavra suspira saudades de um lar que era sua base enquanto lagarta, mas que, por conta das seduções do poeta, tornou-se borboleta.

“Uma parte de mim / é todo mundo: / outra parte é ninguém: / fundo sem fundo.” O poema “Traduzir-se” de Ferreira Gullar escapa de um entendimento mais sistemático para se ancorar em metonímias das quais todos somos partícipes, porque todos nós temos corações e artérias e sangue, todos fazemos parte deste bloco humano: cabeça, tronco e membros. Há algo neste sistema humano que nos abrange numa fisiologia-metonímica harmônica — somos parte e somos todo — “Uma parte de mim / é todo mundo”. Mas, a metonímia da parte pelo todo vigora até a luta que trava um “eu” disperso e ausente que se anuncia num vazio chamado “ninguém”. Base? Não há!... “Fundo sem fundo”.

A leitura da poesia de Ferreira Gullar se multiplica nos olhos e na interação dos leitores com a força da paixão contagiante no discurso apelativo e aceito com aprovação em massa: somos “fundo sem fundo”. Somos partes compactas interligadas e (paradoxalmente) perdidas que somente se reconhecem na fuga da palavra do poeta.

No plano racional, o poema se apresenta também bifurcado numa aparente contradição que, se colocarmos uma lupa, reconheceremos a lógica na confusão: “Uma parte de mim / pesa, pondera: / outra parte / delira”. Do verbo “ponderar” ao verbo “delirar” há uma ponte de entrelaçamentos na vida do eu lírico, como ilustração desta estrofe temos o personagem Láptiev da obra “Três anos” de Tchekhov que casa com Iúlia Serguéievna mesmo sabendo que ela não o amava. A parte do delírio rompe a ponderação na fala dela quando é pedida em casamento: “— O que é isso, o que é isso! — arrastou ela, empalidecendo. — Isso não é possível, garanto ao senhor. Desculpe”. Uma recusa seguida de aceitação. Se Láptiev delira ao casar com uma moça que não o amava, temos um delírio dobrado porque Iúlia também casa sem amor. Ponderações e delírios à parte, temos um casal representativo de um plano paradoxal de sentidos que nos choca pela situação, não rara, e pela lacuna emocional do ineditismo tão próprio dos grandes escritores. “Iúlia” casa sem amar e “Láptiev” casa sem ser amado.

Todavia, embora haja rupturas admitidas no plano racional, o eu lírico concede-nos o alcance da linguagem como forma de existir apesar dos delírios: “Uma parte de mim / é só vertigem: / outra parte, / linguagem”. Pronto! A linguagem é uma lua redonda surgindo na praia deserta dos nossos corações... o veículo perfeito da tradução humana: “Traduzir uma parte / na outra parte / — que é uma questão / — de vida ou morte — / será arte?”

Concluir um poema com uma pergunta de retórica é um tipo de meiguice próprio de quem abriga a palavra fugitiva. O poema de Ferreira Gullar é a palavra exausta de tanta clandestinidade, ela é um agente duplo: secreto e “meio-dia”. Escondida a encontramos nos desencontros, nas antíteses que a vida nos apresenta. No “sim” e no “não” das falas soltas e nas “discussões dentro dos edifícios”.

 

 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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