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“Migalhas”, de Ana Martins Marques: interfaces e contextos emocionais na ausência de amor, por Luzia Almeida

Quando o amor segue num trem desgovernado não se pode fazer mais nada (Foto: Internet/ Reprodução) **Clique para ampliar

Publicado em 08/12/2023

Situações há que exigem solenidade. Situações há que exigem um campo de flores e festas. E situações exigem apenas um eterno vazio quando as emoções foram dissecadas no abismo da separação. Essas representações encontram-se no poema “Migalhas” de Ana Martins Marques, uma espécie de ilustração paisagística e emocional, para o leitor que adora se surpreender com o fantástico da palavra.

O poema “Migalhas”, embora pequeno, tem a extensão de um terremoto para quem já viveu um grande amor e precisa abandoná-lo por motivos que ultrapassam o bem-querer. O amor que se perdeu é como uma praia deserta, sem sol e sem olhos. É um tipo de espetáculo no qual somos os protagonistas, mas sem grandes pretensões: caminhamos silenciosos, como Cecília Meireles, para colocarmos no grande navio uma ausência em forma de despedida... o que era “Canção” só abraça o som do vento. Assim, “Migalhas” se contorce...

“Entre a toalha branca e um bule de café / seria inapropriado dizer / eu não te amo mais”. Sim, porque há palavras que são verdadeiras espadas na sua definição de rompimento, sim, são verdadeiros punhais. Ditas assim à luz do dia prosperam até o infinito. Prosperam na sua eficácia máxima e corrompem os restos dos sonhos nos ouvidos fragmentados: “eu não te amo mais” são palavras que se aproximam de um mar turbulento quando, no barco, nos esquecemos de um salva-vidas. São grandes chuvas de inundação quando acabamos de mudar para a casa nova com flores na varanda. “Eu não te amo mais” dói mais que “eu nunca te amei”. Será? Existe balança para isso?

Quando o amor segue num trem desgovernado, digo, fora do trilho, é urgente a análise do que seria necessário para estender o dia anterior, para que um sol preguiçoso pudesse adiar a dor, porque não é fácil ouvir sentenças num ambiente comum: “Era necessário algo mais solene, / um jardim japonês / para as perdas pensadas, / um noturno de tempestades / para arrebentar de dor, / uma praia de pedras para chorar / em silêncio, uma cama alta / para o incenso da despedida”. Um jardim, um noturno, uma praia e uma cama são recursos paliativos para quem vê a desistência do coração. A palavra “despedida” na hora final, na hora em que o amor declina de sua ação de compartilhamento... então, nesta hora, o único recurso viável e salutar é a leitura de um bom livro para desviarmos as emoções. Nada de álcool! Um romance... bem grande!... Daqueles que nos fazem chorar como “Os trabalhadores do mar” de Victor Hugo ou “Germinal” de Zola. Ou algo menor, mas extremamente emotivo como “O meu amigo pintor” de Lygia Bojunga.

Quando o amor segue num trem desgovernado não se pode fazer mais nada. Não se pode nem mesmo pensar direito: as palavras expostas num vão de clareza, embora entorpeçam os sentidos, criam uma aura de lucidez tão grande que afeta até o fígado quanto mais o coração. Mesmo que a mesa esteja posta e haja pão suficiente, não chegam a satisfazer o básico da existência porque o essencial está na palavra negada. “No entanto você abaixa os olhos / e recolhe lentamente as migalhas de pão / sobre a mesa posta para dois”. O amor que se perdeu é um crepúsculo de um dia que nunca mais vai amanhecer. Somente o sol sumindo no horizonte marcará a perda do sorriso, dos carinhos e das promessas que ficaram perdidas para sempre e espalhadas na mesa junto com as migalhas daquilo que seria pão.

 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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