Pesca Artesanal: tradição e resistência, por Fernando Teixeira
O dia ensaiava amanhecer e já ouvia os passos de meu pai cortando o silêncio daquelas quentes e intermináveis madrugadas de verão. Sabia eu que aquele seu despertar ainda tão cedo, tinha como propósito deslocar-se até o mar que batia logo ali atrás de nossa casa, para assim poder lançar sua tarrafa em busca de alguns pescados. Para ele, um homem de poucos recursos materiais, o sustento da família era algo tão sagrado quanto frequentar as missas dominicais na igreja matriz de nosso bairro, o Saco dos Limões.
Ele tinha a noção exata de que se a pesca daquele dia seria farta; nosso almoço, além de saboroso, por certo lhe possibilitaria economizar algum dinheiro para custear outras despesas da casa. Ainda hoje, trago na lembrança suas chegadas daquelas “incursões” matinais pela orla bem preservada e que lambia suavemente as bordas de nosso quintal. Para mim, era prazeroso vê-lo chegar, ajudá-lo a recolher alguns camarões, sabendo que mais tarde se transformariam num delicioso prato, carinhosamente preparado por minha mãe.
Pescadores retornam da pescaria trazendo o produto de um árduo trabalho
Diferentemente de alguns de nossos vizinhos, essa não era sua atividade profissional, mesmo que ele a desempenhasse com destreza e sabedoria. Muitos deles eram proprietários de ranchos de pesca, os quais eram destinados a guardar os apetrechos da atividade e de onde partiam, com frequência, em suas coloridas canoas, mar a dentro, na busca por produtos que serviriam para a alimentação de suas famílias e cujo excedente era comercializado nas peixarias da redondeza. Localizavam-se tão próximos de minha casa, que bastava alguns passos e já estava eu a circular por entre aqueles ranchos, ouvindo histórias de pescador carregadas de imaginação e fantasia.
As brincadeiras com os amigos quase sempre tinham relação com o ambiente marítimo. Flutuar em balsas feitas de bananeira era uma de minhas preferidas. A sensação de navegar, mesmo que por alguns instantes, me fazia compreender o que aqueles homens sentiam ao cruzarem as águas daquela fantástica baía que se formava bem ali, diante de seus olhos.
A pesca artesanal resiste ao tempo e à modernidade
Era a década de 1960. Florianópolis passava por transformações urbanas, as quais pretendiam atender demandas verificadas por conta de seu crescimento populacional. Se na década anterior, no vizinho bairro da Costeira do Pirajubaé, havia sido implantada a avenida Jorge Lacerda, chegara agora a vez do Saco dos Limões também receber uma nova via que permitisse desafogar o já complicado transito em direção ao Sul da Ilha.
Surgiu assim o primeiro aterro, dando sustentação à Avenida Waldemar Vieira. As águas que antes banhavam os quintais foram dessa forma interceptadas, e os pescadores, tão acostumados com aquela proximidade com o mar, viram suas atividades serem substancialmente modificadas com a chegada dessa nova realidade.
Seus ranchos precisaram ser deslocados e cruzar a avenida para chegar à nova praia que se formara; isso acabou afastando os mais velhos de sua antiga rotina. Anos depois, a execução de um novo aterro, esse de proporções muito maiores do que os anteriores, ampliou ainda mais as dificuldades desses pescadores no seu acesso ao mar, seu rico e precioso local de trabalho. Assim como em qualquer obra de grande porte, houve também ali a necessidade de se buscar alternativas que pudessem mitigar os prejuízos causados àquelas comunidades.
Surgiram, dessa forma, ao longo da nova borda do mar, alguns conjuntos de ranchos destinados aos pescadores que pretendiam continuar a desenvolver suas atividades. Com isso, a pesca artesanal, tanto a de subsistência quanto a realizada de forma profissional, teve sua continuidade garantida.
O pôr do sol é um espetáculo à parte na linda Baía Sul
Aos poucos, a nova realidade foi sendo incorporada ao cotidiano desses bravos homens que enfrentam diariamente muitas adversidades na prática dessa difícil, mas prazerosa atividade humana. Sempre que frequento esses locais, tendo como objetivo capturar imagens desse enigmático ambiente, me transporto invariavelmente à infância. Não há como estar ali, sentir os aromas, ouvir conversas no ligeiro linguajar dos pescadores, vê-los chegarem exultantes com o resultado de seu trabalho e não sentir uma emoção diferente.
Mudanças significativas podem ter ocorrido na paisagem, mas o coração ainda guarda as lembranças daquela simples, mas rica infância. Convido-o(a)s a fazerem um passeio a algum desses lugares. Por certo, compreenderão um pouco mais a alma ilhoa, seus costumes, suas antigas e tão preciosas tradições. Ah... ainda tem um pôr do sol de tirar o fôlego! Que tal?
Da redação
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Sobre o autor
Fernando Teixeira
Formado em Arquitetura e Urbanismo (UFSC), mestre em Geociências e Doutor em Educação Científica e Tecnológica (UFSC), natural de Florianópolis. Atualmente tem se dedicado à fotografia.
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