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Simplesmente o ovo
Versátil, ele circula com leveza por várias especialidades culinárias

Foto: Reprodução

Publicado em 08/04/2020

O ovo, simplesmente o ovo, é o mais representativo símbolo da Páscoa. Não aqueles dos túneis montados nesta época do ano nos supermercados. Ele representa o nascimento e a ressurreição. Para os cristãos, é a ressurreição do Messias; para os judeus, é o renascimento após a saída do Egito. Se formos adotar “ao pé da letra” o espírito da Páscoa como é hoje, tão comercialmente exaltado, podemos renascer em uma surpresa Kinder ou como uma princesa da Disney!

O ovo também é o símbolo da vida, da renovação, da criação cíclica. Essa simbologia, este ovo cósmico que contém o germe, o fruto da vida, está presente em várias culturas desde o inicio dos tempos, e quase sempre ligado à criação do mundo que sucede o caos. Mas, acima de tudo isso, o ovo é a primeira forma de vida pluricelular e é tão antigo quanto a vida humana. Tem-se provas de sua existência desde o período pré-cambriano, isto é, há mais de seiscentos milhões de anos. O ovo é o principio de tudo!

O ovo é também produto de primeira necessidade no universo gastronômico, simples e de sabor único. Alexandre Dumas afirmou em seu Grande Dicionário de Culinária, obra-prima do século XIX: “a melhor forma de comê-lo é quente na casca... e se tiver o capricho de cozinhá-lo dentro do caldo, nem de mais, nem de menos, você comerá o ovo perfeito!”. Segundo escreveu Willian Kitchiner no The Cook’s Oracle, em 1821: “existem 685 maneiras de preparar ovos na culinária francesa”. Porém, pensando como cozinha globalizada, não há como enumerar as maneiras de se preparar e apresentar o ovo.

Cozido, frito, assado, cru, batido, mexido, aerado, em crepes, bolos, pães, massas, mousses e sempre cheio de segredos, conselhos, dicas, mistérios e técnicas para a sua perfeição. Perfeição essa exigida quando se trata da preparação de uma omelete: três ovos apresentados de forma lisa, textura macia, sem corar e úmido no interior. Esta, concordam a maioria dos chefs, é a melhor maneira de avaliar um bom cozinheiro.

No steak tartar, ou boeuf tartare, o ovo aparece cru sobre a carne de boi, também crua, picada na faca, sem gordura e temperada com sal, pimenta e alcaparras. O ovo frito na manteiga, com a clara cremosa e a gema levemente aquecida, sem cozer, vira um clássico quando servido com trufas brancas frescas finamente fatiadas na hora de ir à mesa, simples ou sobre uma polenta cremosa. Oeufs pochés, literalmente “ovos embolsados”, do francês, são cozidos sem casca em água levemente ácida. Alguns cozinheiros usam a manteiga pura, e a clara recobre a gema crua com uma camada cremosa e esbranquiçada.

Esses ovos combinados com muffins tostados na manteiga, fatias de canadian bacon, salsa e molho holandês foram estrelas do cardápio do Delmonico de New York no começo do século passado, desenvolvidos especialmente para Mr. e Mrs. Le Grand Benedict. Daí o nome “eggs Benedict”, presente em várias cartas até hoje. Em New Orleans, os mesmos ovos pochés eram servidos com coração de alcachofra, presunto, anchovas, trufas e o mesmo molho holandês: eggs Sardou, uma homenagem ao dramaturgo francês Victorien Sardou no restaurante Antoine’s.

Talvez pela sua simplicidade e pluralidade no preparo, todo o cozinheiro profissional ou amador, chef ou dona-de-casa, tem uma receita onde o ovo é a estrela. Basta uma simples pesquisa no Google para ver o quanto é real essa minha afirmação: omelete – quase dois milhões de respostas, ovo frito – duzentas e cinqüenta mil, ovo cozido – quase um milhão, e por ai vai. Antonin Carême cozinhava o ovo no forno: o colocava sobre um escalope de foie gras na manteiga e cobria com ostras cozidas pochée, regando tudo com nata fresca.

Paul Bocause dedica algumas páginas do seu livro La cuisine Du marché para ensinar o preparo de ovos estrelados, escalfados, omeletes, enformados, em cocotte, duros, mexidos e mal passados em várias versões clássicas e pessoais. Mas, como o nada é perfeito, o ovo, até o ovo, tem um grande defeito para os apreciadores da boa cozinha. Por ”via de regra”, um bom garfo é um bom copo, e um bom copo não combina com ovos.

Combina sim se for um copo de cachaça com o ovo colorido do boteco ou a cervejinha com ovos de codorna em conserva, que não destrói só as papilas gustativas, destrói a pretensão de qualquer ser se tornar um bom gourmet. Voltando ao ovo e ao vinho, a gema cobre a boca, tanto crua e mole quanto cozida com sua textura seca e farinhenta, mas não é um problema insuperável. Há um prato clássico, oeufs em meurette, onde os ovos são escalfados no vinho Pinot Noir que vai muito bem com um Borgonha modesto, nada muito complexo. Em geral, ovos são superados por seus molhos na hora da harmonização, e se aliam melhor aos brancos como Chardonnay sem carvalho ou um alsaciano Pinot Blanc.

Molhos como o holandês e a maionese, que têm os ovos como base, aceitam também um Sauvignon Blanc, enquanto as quiches e suflês pedem um bom Borgonha branco, quando o sabor do seu recheio não supera a leveza dos ovos. No frigir dos ovos, os ovos podem seguramente fazer parte de um belo e elegante cardápio sem nos fazer pisar em ovos no momento de servir o vinho. Arrisque... um bom ovo vale uma refeição!