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O tempo não para
Como na vida, na cozinha ele em tem a medida certa

Foto: Reprodução

Publicado em 11/10/2019

Ouço ecoar aos quatro cantos: o tempo passou! Tudo bem que o tempo passou, mas por onde ele passou que eu não vi? Passou tanto e tanto passou que dia desses assistia eu calmamente a TV, matando tempo, e vi a chamada de uma novela de época: no tempo das discotecas, das golas largas, da cintura alta, das meias coloridas e das pistas iluminadas.

Mas essa é a minha época, esse é meu tempo. Tempo que vivi as maravilhosas aventuras e desventuras irresponsáveis da juventude! Desde quando 1980 é um tempo que já pode ser retratado em novela de época? Agora entendo o que minha vó sentiu quando da estreia de Estúpido Cupido em 1976 retratando os anos 1950. Novela de época não era Escrava Isaura, A Moreninha e Sinhá Moça? Em que momento eu virei o Coronel Leôncio e não notei? Serei eu o próximo a virar boneco de cera? Será que os meus heróis que não morreram de overdose hoje já fazem parte do acervo do Museu da Madame Tussauds!? Tudo indica que sim... o tempo passou! Caetano Veloso - que habita este planeta há mais tempo que eu e cuja juventude é anterior à minha época - às vezes parece estranho em suas poéticas letras (Lambetelho, frúturo, orgasmaravalha-me Logun... o que que é isso Cae?), mas na poética homenagem ao tempo, o baiano acertou! O compositor de destinos certamente é o tempo.

O tambor de todos os ritmos? É o tempo! Só resta entrar em acordo com ele... tempo que te quero tempo! Invariavelmente, em encontros rápidos, com pouco tempo, todos fazem referência ao tempo, em geral da rapidez e da falta dele, e essa falta de tempo tornou-se o álibi dos nossos erros e irresponsabilidades. O tempo que nos falta é aquele que não sabemos administrar! Não é o tempo dedicado ao almoço com um amigo. Muito menos o gasto com o preparo de um café especial diariamente. Não é o tempo que vamos ao cinema de mãos dadas que vai fazer diferença. O tempo que nos falta parece ser o tempo dedicado às redes sociais, aos smartphones e tantas outras maneiras que facilitam nossa comunicação e nos afastam todo dia um pouco do mundo e do tempo real.

A internet nos roubou o tempo! Quanto tempo era dedicado aos papos no telefone nos idos 1980? Os minutos eram contados e controlados e, quando em viagens internacionais então, os minutos eram proibitivamente “preçados”! Falta-nos tempo para cuidar da saúde, mas quando ela se fragiliza e uma doença se apresenta, arrumamos tempo para curá-la, isto quando ainda dá tempo! Falta-nos tempo para correr na praia ou no parque, mas encontramos para conquistar mais uns tostões, mesmo que não necessários. Falta-nos tempo para cozinhar com a calma que esse ato merece, mas sobra tempo para qualquer joguinho online sem graça. O tempo não é só a raiz e a cura de todos os males, é o principal ingrediente de todas as receitas, tanto culinárias quanto médicas.

O tempo nas receitas é fundamental desde o tempo das nossas avós até as audaciosas receitas do tempo atual, como as formigas gourmets do Repzik, que como tantos outros chefs, se julgam tão à frente do seu tempo que não valorizam as avós caipiras que já usavam formigas em receitas como na farofa de içá! Falta-nos tempo conhecer a arte de cozinhar simples do passado e sobra tempo para a arrogância da gastronomia no tempo em que vivemos. Ao lado da temperatura adequada, o tempo é o ingrediente secreto de algumas das maiores obras da confeitaria mundial: o marshmallow, os amaretti, o pudim de claras e até os aclamados macarrons, entre tantas outras joias. O pudim de leite sem furinhos é amigo do dueto tempo longo e calor suave. Na culinária clássica, o confit de canard tem seu tempo preguiçoso e morno. Tempo morno como o da terrine de foie gras, que exige uma combinação milimétrica de tempo e calor.

E o que dizer da porchetta italiana? A carne do porco se entrega a uma combinação perfeita de tempo e temperatura: muito calor em pouco tempo para selar a carne, muito tempo e pouco calor para cozinhar e fundir as diversas texturas e temperos e, finalmente, muitíssimo calor e pouquíssimo tempo para pururucar a pele! O frango assado de domingo também tem seu tempo de assar com papel alumínio, tempo para regá-lo com o caldo da assadeira e tempo para dourar a pele... deliciosa combinação caseira. Não teria tempo para citar todos os exemplos que mostram o quanto o tempo e temperatura são a alma de qualquer receita! Sem eles temos somente uma lista de produtos, que por mais bem combinados que sejam, não garantem um bom prato. Como na vida, na cozinha tudo depende do tempo: não pode faltar nem sobrar. Tem a medida certa e depende de cada um saber dosá-lo para obter o prato perfeito, em todos os sentidos. Não consigo pensar em um ingrediente mais importante que o tempo na composição de uma receita.

Talvez a saudade seja mais inspiradora: saudades de um sabor da infância, de um quitute da nossa vó, de um prato que marcou um momento especial... Tudo a seu tempo! E segundo Mário Quintana, só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo!