00:00
21° | Nublado

Ler é preciso
Há muito a ser aprendido sobre culinária no universo das palavras

Foto: Reprodução

Publicado em 05/04/2019

Já escrevi nesta coluna o quanto considero vital a boa leitura. Talvez por tanto tomar sopa de feijão com macarrão de letrinhas na minha infância, a cada dia que passa sinto-me mais conectado ao mundo das letras. Sou um eterno aprendiz das panelas... e um aprendiz das letras. Gosto de escrever como gosto de cozinhar, e assim como na cozinha, as letras se tornam mais fascinantes a cada nova leitura. Para cozinhar é preciso estar sempre lendo de tudo, desde receitas até livros técnicos, e para escrever isso se torna ainda mais indispensável, portanto, leio muito. Leio tudo o que me interessa... e o que não interessa tanto leio também. Leio até o que considero chato e o que acho fútil.

Leio artigos “intelectualóides”, histórias em quadrinhos e até bulas de remédios. Leio livros de História, de Nutrição e de receitas d’A Cozinha Maravilhosa de Ofélia’. Leio Kafka, gosto de Tolstoi, peças de Bertold Brecht e Shakespeare. Leio gibis de Walt Disney, livros de culinária, biografias e religiosos. Leio Raquel de Queiroz, Humberto Eco, Michael Polain, Garcia Marques e Graciliano Ramos. Leio tudo de bom e muita coisa muito ruim também. Só não leio livros de auto-ajuda! Entre revistas e jornais passo horas viajando com muitos cronistas, desde o genial Ricardo Boechat, que deixa saudades, até o despretensioso José Simão. E nessas leituras já encontrei muitas definições de ser cozinheiro, do ato de cozinhar e de comer... entre elas, algumas que merecem ser citadas.

Em “Carême, o cozinheiro dos reis”, o personagem que é considerado até hoje o rei dos cozinheiros relata o prazer e as dificuldades de fazer alta gastronomia no século XIX, onde as péssimas condições de trabalho o levaram à morte por envenenamento devido à fumaça de carvão dos seus fogões. A preocupação em registrar receitas e observações que são referências até hoje fez dele também um grande cronista.

Cronista também é a escritora Nicole Mones, de “O último chef chinês”. Neste livro, teoricamente uma ficção, anotei na memória uma das frases que me guiam: “... qual o ponto máximo da culinária refinada? ... os ingredientes frescos? ... os sabores mais complexos? ... seria o rústico ou o raro? ... o auge não é o comer nem o cozinhar, mas sim o oferecer e o compartilhar o alimento!” Minimalista e perfeita descrição de Irvine Welsh em “As revelações picantes dos grandes chefs”: “Por certo o nosso chef de cozinha precisa ser um artesão: um artífice com orgulho obstinado nos detalhes esmerados e por vezes mundanos do seu métier. Certamente, o chef de cozinha também é um cientista. Mas ele é mais que simplesmente um químico: é um alquimista, um feiticeiro, um artista, e suas misturas não são feitas para curar enfermidades do corpo e da mente, mas sim para atender a maravilhosa incumbência de elevar a alma.”

Já Julian Barnes, autor de “O pedante na cozinha” define cozinhar como “a transformação da incerteza, (a receita) em certeza (o prato) via estardalhaço”. Michael Ruhlman descreve sua epopeia cursando o Culinary Institute of America, CIA, onde somente dois de cada setes aspirantes conseguem o título de “master chef”, um processo fatigante que é muito mais que um programa de TV, é uma viagem à perfeição que revela “A alma de um chef”. De tanto ler e tão pouco saber, tenho certeza que tão importante quanto o talento, o bem cozinhar está no conhecimento. De nada adianta o corpo tatuado com utensílios de cozinha e homenagens gastronômicas, se o cérebro não está tatuado com conhecimento. Não basta um diploma na Cordon Bleu para comandar uma cozinha com genialidade; ser cozinheiro vai além disso, passa por uma consistente biblioteca. Ser cozinheiro vai além de decorar velhas fórmulas e repetir velhas receitas com novas caras. Vai muito além da desconstrução gastronômica. Ser cozinheiro é construir harmonicamente sabores, texturas, cores e aromas!

Teria páginas e páginas de anotações para citar, mas não tenho a capacidade de compilar de Moacir Scliar em “A língua de três pontas” ou de Millôr Fernandes em “O homem do principio ao fim", e vocês, certamente, não teriam tempo nem paciência para lê-las. Mas assim a vida segue, viajando entre as prateleiras da minha biblioteca, encerro essa leitura com uma triste constatação de Carlos Drummond de Andrade: “ a leitura é uma fonte inesgotável de prazer, mas, por incrível que pareça, a quase totalidade não sente essa sede”!

Bom apetite... apetite de livros!