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Do samba ao estrogonofe

(Foto: Divulgação)

Publicado em 25/07/2017

Salve o picadinho, clássico popular brasileiro que agrada bons gourmants, bons vivants e bons gulosos.  Carioca e boêmio, o picadinho tem a alma de um bom samba, e como ele, tem data de nascimento e autoria incerta e discutível: pode ter nascido em um botequim na Lapa ou em um restaurante popular na Praça Onze. Pode ter sido tanto no final do século XIX como nos anos 1930. Fato é que a partir dos anos 1950, passou a frequentar não só a capital federal, mas todo sudeste, dos mais populares até os mais sofisticados cardápios. Era presença certa nas mesas da Boate Meia-Noite no Copacabana Palace e em endereços charmosos da capital paulistana, assim como marcou presença no Catete e foi destaque nas cozinhas presidenciais do Alvorada.

Sua receita simples, como tudo deveria ser, tem como principal elemento uma boa carne bovina, e quando falo “boa” não quero dizer carne de primeira como falam popularmente, mas de boa procedência, criadores responsáveis e confiáveis. Atualmente, pensamos sempre no filet mignon, mas na história da gastronomia popular, qualquer naco de carne podia ser usado, variando somente o tempo de cozimento e o sabor final. Lembrem-se: os sabores mais ricos estão nas carnes consideradas menos nobres, de segunda como dizem, as melhores!

Picadinho não é carne moída, isso muitos chamam de guisado. Também não é uma carne cortada toscamente, esse corte preguiçoso pode ser aproveitado no máximo para compor um caldo de carne. Picadinho tem a carne cortada à faca afiada em pequenos cubinhos, picadinha como sugere o nome, livre de nervos e gorduras exageradas. Originalmente era feito em panela de cobre grosso como já não existem mais, mas a panela de ferro cumpre bem esse papel.

Depois dos cubinhos bem tostados sem deixar a carne soltar seu suco, isso só com a panela na temperatura certa podemos conseguir, cebola e alho picado vão temperar e começar a liberar os perfumes que harmonizam com uma boa cachaça. Tomates maduros e cheiro verde completam o molho que também aceita folhas de louro, alecrim e sálvia no seu buque de aromas. Para ir à mesa: travessa de barro, arroz, agrião picado, farinha de mandioca torrada, pimenta malagueta e ovo poché (esse toque francês surge como uma homenagem da boemia tupiniquim a soupe d´oignon, que alimentava os boêmios parisienses na década de 1950).O ovo frito e a banana empanada caracterizaram a versão paulista.

Na mesma São Paulo, uma das melhores publicações gastronômicas da atualidade foi criativa e atrevida ao ponto de promover, recentemente, uma eleição popular não para escolher o melhor restaurante, não o best-chef, muito menos o laboratório/cozinha mais eficiente, nem o foie gras mais bem elaborado ou a trufa mais fresca: elegem essa semana o melhor picadinho! Iniciativa para ser aplaudida, afinal, picadinho é a ponta do iceberg da rica gastronomia popular brasileira.

O picadinho não é exclusividade da cozinha brasileira. Na história da gastronomia mundial, o nosso picadinho tem um primo mais elegante e mais sofisticado: estrogonofe, um picadinho russo metido a francês. Não nasceu em um boteco, mas tem data de nascimento e autoria tão incertas quanto o nosso prato que fez história. Entre tantas versões do aparecimento deste ícone, a que tem a história como mote principal é a que mais agrada e a que eu assumi como a verdadeira: surgiu no século XVI como ração para o exército russo.

Os nacos de carne, conservados em barris com aguardente e sal grosso, eram aquecidos em um molho grosso, quase um mingau, feito com leite, muitas vezes azedo, antes de serem servidos aos soldados. Essa descrição definitivamente não me apetece. Mas o Czar Pedro, o Grande, tinha no comando de sua cozinha um criativo cozinheiro que, a pedido de seu padrinho e protetor, refinou a cocção desse picadinho enriquecendo-o com nata e ervas aromáticas, além de usar a carne mais fresca, para que assim fosse servido nos banquetes da corte deste que foi um dos mais visionários czares da Rússia.

O padrinho deste cozinheiro: General Stogonov! Com o êxodo provocado pela Revolução de 1917, a receita chegou à França, onde foi aprimorada tomando a forma semelhante a que se apresenta hoje e é o clássico strogonoff, que está entre os dez pratos mais vendidos no mundo, ao lado da lasanha e do filé a parmigiana.

O picadinho deve estar entre os dez mais vendidos no Brasil, certamente ao lado do estrogonofe e das muitas versões de moquecas. Se é cafona ou não comer picadinho e estrogonofe eu não sei. Mas, brasileiro que sou, pretendo continuar comendo picadinho e estrogonofe, escutando samba, cantando e me encantando com frases piegas como: “ não vou te mandar pro inferno porque não quero e porque fica muito longe daqui...”

Cafonas e românticas... e simples como tudo deveria ser.