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Aos mestres com carinho
Criadas ou copiadas, receitas clássicas são grandes inspirações culinárias

Cones de salmão, de Thomas Keller (Crédito: Reprodução)

Publicado em 09/03/2020

Gosto de comer bem e freqüento muitos restaurantes, mas nem sempre foi assim. Não que eu não gostasse de comer bem, mas, quando jovem e estudante, não tinha subsídios para tal. Sim, já fui jovem e estudante! Surgiu daí a brilhante ideia de “copiar” as receitas de restaurantes para fazer em casa, e assim começou minha história na cozinha: uma mistura de necessidade e curiosidade.

Gostava - e gosto - muito dos pratos com a “cara” de São Paulo dos anos 1980, e minhas incursões gastronômicas começaram com a torta de galinha do Ritz, as quiches do Charlô, a lasanha do Longchamp, os pratos do Wlady Soares que recheavam o cardápio do Spazio Pirandello, as massas do Piolin e tantos outros lugares que não seria de “bom tom” citar aqui, tipo “prefiro não comentar”, mas prestava muita atenção nos pratos e seus detalhes para mais tarde copiá-los.

Hoje, encontro em cardápios ditos de vanguarda, esses pratos clássicos, não só os da minha juventude, mas também clássicos de fato, ou clássicos criados por chefs renomados que, por sua originalidade e genialidade, já são clássicos. Nada contra. Inclusive eu lanço mão deste artifício, mas o que sinto é que a maioria dessas “criações” não passa de um lamentável “déjà vu” com muitas tentativas malsucedidas, com infindáveis execuções lamentáveis e raras cópias fidedignas.

Pratos assim geralmente são apresentados no cardápio valorizando uma receita conhecida, um restaurante conhecido, um chef conhecido e até pessoas oportunistas alçadas a conhecidas, as neocelebridades, quase sempre precedidas de alcunhas como: “em homenagem a”, “inspirado em”, “seguindo a tendência de”. Nunca o tal homenageado é um “Zé Ninguém”, até porque o foco dessa ação é vender, virar notícia ou criar polêmica, estratégia de marketing que torna a gastronomia atual em um “case publicitário” e não na prática da arte culinária.

Mas, voltando ao foco gastronômico, nada mais prazeroso que um prato bem feito - clássico, cópia ou criação - com carinho, técnica e alma. Eis a diferença de um cozinheiro de forno & fogão e um chef de biblioteca, de laboratório, copista ou um mero invejoso! Sinceramente, acho que em gastronomia o que é bom é para ser copiado, e me orgulho de ter copiado, experimentado e reproduzido fielmente alguns pratos de alguns mestres e me dado o direito de alterar alguns sem nenhum pudor.

Tenho orgulho também de ter sido copiado, tanto pelos talentosos quanto pelos invejosos, pois para ser copiado é necessário criar, e crio melhor que copio. Da obra do Laurent Suaudeau copiei uma mousseline de mandioquinha com ovas de salmão e caviar, uma mistura harmoniosa de sabor, cor e textura perfeita e, na minha adaptação, a manteiga de trufas confere um perfume único.

Do mesmo Laurent veio a receita do clássico creme brulée que sirvo: a mais equilibrada de todas que provei e a mais simples também. O creme de funghi em crosta, criação memorável do Luciano Bossegia quando no comando da cozinha do Fasano, é figurinha carimbada em muitos dos meus cardápios. Em 1994 a Revista Vogue publicou uma série especial com os Grandes Chefs, e no tomo protagonizado por Luciano estava esta receita, com o mesmo sabor da primeira vez que experimentei. Fui às nuvens.

Nesta mesma edição, outra receita maravilhosa do glamuroso Fasano da Haddock Lobo: o peito de perdiz com polenta. Esta tentei reproduzir, sem sucesso, beirando o desastre. Nem todas acertamos! Copiar ou adaptar receitas clássicas merece respeito e uma boa dose de licença poética: o que seria do cardápio sem algo “a Rossini”, algum “chateaubriand” ou uma mera “mayonnaise” (não maionese Hellmans)? São receitas com nome e sobrenome, ícones da gastronomia! Estas homenagens são parte da história da alimentação tanto quanto as copias e as adaptações.

Certa vez fui convidado a reproduzir o cardápio do filme “A Festa de Babette”, uma homenagem à cozinha francesa, e dele fazia parte uma sopa de tartaruga! Ora, como conseguir tartaruga para o Potage à la Tortue? Tentei em supermercados e mercados, pensei em casas de umbanda, traficantes de animais e saqueadores de zoológicos, mas onde se compra carne de tartaruga?

Resposta: não sei e não tenho o menor interesse em saber! Só sei que o chef Marc Le Cornec fez uma alquimia com carne de vitelo e ostras para criar uma quenelle cozida no caldo de legumes, que resultou em uma sopa de tartaruga fantástica que faria Babette chorar de emoção e a Tartaruga Touché ficar de luto pela perda do parente... uma cópia perfeitamente adaptada!

Copiar sabores é uma evolução da arte de cozinhar, não só dos grandes estudiosos, mas também das cozinheiras domesticas que, com abobrinhas, tomates e muitas folhas de louro, criam o falso camarão que tem sabor de: camarão! Cópias caseiras vivem nas lembranças infanto-culinárias. Mais que as cópias, respeito muito as homenagens e as inspirações.

Como conhecer o trabalho de alguns chefs, cozinheiros de alma, sem se inspirar? Thomas Keller, para mim um dos melhores chefs de hoje, alcança a perfeição de sabores em pequenos detalhes, assim como Carême e Escoffier, detalharam a cozinha para alcançar a perfeição dos sabores. Como cozinhar sem ter mestres para nos inspirar e um leque de gourmets, gourmands e cozinheiros para homenagear?

Entre minhas inspirações e homenagens, surgem todo esse tipo de gente: Mara Salles, Celidônio e os Toigros; Cora Coralina, Raquel de Queiroz e Anthony Bourdain; Alain Ducasse, Shin Koike e Paulo Martins; Ana Soares, Bob Spitz e Roberta Sudbrack; Mari Hirata, Bassoleil e Ana Castilho; Alain Passard, Dan Barber e Jun Sakamoto. Enfim... preciso de mais espaço para citar todas inspirações e aplaudir todos os que gostaria de homenagear. Não só os reconhecidos, mas principalmente todas as cozinheiras da minha vida e os amigos da cozinha que sempre me inspiram. Fica aqui a minha admiração aos que copiei e aos que me copiaram e melhoraram o que criei, pois se me copiam, é porque eu também posso inspirar!