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A geleia: sua história e suas estórias
Utilizada com maestria como sobremesa, doce faz parte do Grande Dicionário da Culinária


Publicado em 02/07/2019

“Geleias e marmeladas são preparadas com sucos de frutas maduras, cozinhados com açúcar até uma consistência adequada. São refrescantes e possuem vantagens que fazem algumas recomendáveis tanto aos doentes quanto às pessoas válidas. Grande recurso na convalescença dos doentes, figuram muito convenientemente em todas as sobremesas.” Definição lógica, perfeita e doce como geleia datada do fim do século XIX, retirada “ipisis literis” do Grande Dicionário de Culinária, uma fonte de conhecimento.

Porém, o curioso deste dicionário não é o seu conteúdo ou a receita de geleia. Interessante mesmo é a história de como chegou a ser publicado e o porquê do autor de aventuras de capa e espada escolher este tema. Talvez o francês Alexandre Dumas o tenha escolhido por julgar que a cozinha sempre seria um assunto de altas rodas, o mundo em que vivia. Mas, modestamente, declarou que o escreveu com o intuito de assegurar sua glória póstuma ao lado de duas outras obras indiscutivelmente eternas: Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo.

Nesse último, Dumas descreve, para mim, a melhor cena de fuga criada na história da literatura, quando o jovem Dantès, encarcerado por quatorze anos, injustamente, na ilha-prisão Le Château d’If, é jogado ao mar em um saco por ter sido considerado morto e, a partir daí, arquiteta toda sua vingança. Nenhuma versão cinematográfica desta cena chegou aos pés do que é o texto. E foi tão grande o sucesso deste livro na época, inclusive financeiramente, que o escritor se deu ao luxo de construir uma mansão nos arredores de Paris, que batizou de Castelo de Monte Cristo.

Essa extravagância quase o levou à falência e, desta falência, surgiu a ideia de redigir a obra sobre culinária, não um simples manual como vários da época, mas um Grande Dicionário com todas informações então disponíveis. Onze anos se passaram desde a decisão até a obra completa. Neste período, passeou com seu iate (grande galã esse Dumas!), vivendo de ‘bicos’ não muito éticos, como tráfico de armas, para garantir a empreitada dos Mil Camisas Vermelhas na libertação do Reino de Nápoles e da Sicília. O comprador e comandante desse feito: o nosso Garibaldi, outro grande aventureiro. Os dois se tornaram tão íntimos, que quase todas as peripécias de Garibaldi foram acompanhadas por Dumas em relatos vibrantes que alimentaram os jornais de Paris e outros por toda a Europa, ‘bico’ que alimentava também seu bolso e garantia sua boa vida.

Até filmar esses fatos o escritor filmou... filme no século XIX! Dumas, um bon vivant que apreciava muito a gastronomia, não fez de seu Dicionário o sucesso das suas outras duas obras primas, mas nos deixou um legado que serve de referência e fonte inesgotável de informações gastronômicas até hoje. Mas a sua geleia já não é mais a mesma! Imaginem a geleia de pimenta executada pela definição do dicionário: pimentas maduras cozinhadas com açúcar até uma consistência adequada! O seu sabor seria perfeito para o dragão de São Jorge se alimentar, já que está acostumado a soltar fogo pelas ventas!

O aspecto gelatinoso da geleia vem da pectina, que nem a pimenta e nem a maioria das frutas a têm, portanto, para essas geleias temos que usar outro fruto como base. Maçã, ameixa, laranja, damasco, jabuticaba e outros são fontes naturais de pectina, que necessita também de acidez para sua formação. A casca da laranja é usada como base para as geleias exóticas por ter um sabor marcante de absolutamente nada. Para uma boa geleia de rosas, peguemos das flores o sabor e o perfume, e a gelatina da pectina vinda da neutralidade da casca de laranja. Essa geleia transforma um sorvete de creme sem graça em uma sobremesa elegante e sutil que pode ser servida com pétalas cristalizadas. Também está na casca e nas sementes de maçãs ácidas uma boa fonte de pectina.

Já a pimenta, que não tem acidez, a toma emprestada da maçã, que também faz a base da geleia e não precisa necessariamente ser servida com queijo brie, como sugerem vários cardápios sem originalidade de pretensos bistrôs. Do Grande Dicionário de Dumas peguei a geleia como um exemplo, mas ele disserta em mais de seiscentos verbetes e quatrocentas receitas, um retrato da gastronomia da época, e mostra o quão pouco ela mudou quando falamos de alimentação em sua forma mais pura, sem espumas, gelecas, melecas laboratoriais e outras modernidades sintéticas.

O cordeiro à moda húngara descrito no século XIX é o mesmo apresentado hoje em bistrôs franceses, sendo que na época não existiam nem os confortos do gás e da geladeira, muito menos de câmaras hiperbáricas com cronômetros digitais para garantir a textura semelhante à da carne cozida no fogão a lenha. É mais lógico voltar ao fogão a lenha e colocar cozinheiras na cozinha ao invés dos atuais doutores-físico-químicos-molecures-cozinheiros criados em laboratórios. Grande Dicionário de Culinária de Alexandre Dumas... vale cada página! Inclusive pelas ilustrações de mestres como Doré, Varin e Grandville, que fizeram de seus traços um traço marcante na França dos séculos XV a XIX.