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O tema do Enem 2023 é pra todos
“Às seis da tarde” e “Mama África”: seriam possíveis citações para a redação do Enem 2023

'A sociedade brasileira tem passado por inúmeras transformações sociais ao longo das últimas décadas. Entre elas, as percepções sociais a respeito dos valores e das convenções de gênero e a forma como as mulheres têm se inserido na sociedade' Marina Colasanti. (foto:Pinterest)

Publicado em 12/11/2023

O tema da redação do Enem 2023 foi: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Tema com relação direta à desigualdade social. É verdade que ninguém esperava algo assim, de modo geral os temas são verdadeiras incógnitas, mas as questões sociais que fazem referência ao “desafio”, à “invisibilidade” e ao “enfrentamento” são comuns em quase todos as provas de redação. E, se o candidato não tem como se preparar para um tema específico, haja vista o sigilo, nem por isso ele está autorizado a desprezar citações de autores(as) que poderão ser usadas na elaboração do seu argumento — de autoridade — para justificar seu ponto de vista ou sua tese.

Nesse sentido, a partir do tema selecionado para este ano, poderíamos indicar dois textos que cabem perfeitamente nesta página (de prova) que não pode ser assinada. Quem assina é o autor que participa como colaborar concedendo uma citação. Desta maneira, uma possível citação seria do poema “Às seis da tarde” de Marina Colasanti: Às seis da tarde / as mulheres choravam / no banheiro. / Não choravam por isso / ou por aquilo [...] choravam porque no céu / além do basculante / o dia se punha / porque uma ânsia / uma dor / uma gastura / era só o que sobrava / dos seus sonhos”. Estes versos refletem a falta de realização social representada por “seus sonhos” frustrados. A questão dos desafios proposta pelo tema do Enem focaliza a realização pessoal da mulher. De que maneira a sociedade brasileira poderá valorizar o trabalho da mulher de modo que ela se sinta realizada profissionalmente. O trabalho doméstico sem remuneração é uma “gastura” e mesmo quando a mulher trabalha como operária, ainda sim, “às seis da tarde / as mulheres regressam do trabalho [...] e elas não podem / não querem / chorar na condução”. Chorar é verbo feminino. Da doméstica à operária, de qual maneira essas mulheres veem seus sonhos sociais num horizonte para além de suas
expectativas? Não veem.

Outra citação que caberia nesta redação é a letra da música “Mama África” do Chico César: “Mama África / A minha mãe / É mãe solteira / E tem que / Fazer mamadeira / Todo dia / Além de trabalhar / Como empacotadeira / Nas Casas Bahia”. Este texto do autor paraibano dialoga em plenitude com o poema de Colasanti: é a mesma mulher que labuta em casa e nas “Casas Bahia” e o texto de apoio da coletânea destaca: “A sociedade brasileira tem passado por inúmeras transformações sociais ao longo das últimas décadas. Entre elas, as percepções sociais a respeito dos valores e das convenções de gênero e a forma como as mulheres têm se inserido na sociedade”.

Estas transformações estão longe de alcançar seu objetivo final, por isso não podemos esperar a remoção desta montanha apenas pelas forças autorizadas dos poderes públicos. É necessário que todos os setores sociais, juntos, numa sinergia, abracem esta causa que é minha e é de toda mulher brasileira na luta por um sonho social além da carteira de trabalho assinada. É necessário que se reconheça a força do trabalho feminino numa igualdade de gênero e que “banheiro” e “condução” deixem de ser lugares de lágrimas porque no “céu além do basculante” há compromisso e justiça social para todas.

Portanto, a proposta de intervenção para o tema do Enem 2023 não é somente para os candidatos.


Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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