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Seu Erasmo – lições de urbanidade (e de urbanismo), por Fernando Teixeira

Seu Erasmo – 100 anos fazendo parte da vida e da história da Ilha de Santa Catarina (Fotos: Fernando Teixeira) **Clique para ampliar

Publicado em 26/07/2023

Guardar na memória as conquistas ou adversidades que a vida nos coloca, transformando-as em aprendizados constantes, é um dom que poucos possuem e conseguem cultivar ao longo de sua existência. Quando essa permanência no campo terreno, por dádiva divina, se materializa ao longo de 100 anos, isso se reveste de um significado cujo valor é imensurável. 

Mesmo que buscássemos todas as evidências, é quase certo que fugiria à nossa limitada compreensão o quanto alguém, com toda essa bagagem e experiência, possa ter contribuído para transformar a comunidade que o viu crescer e, por consequência, a vida de todos aqueles que por ele foram tocados. Assim é Erasmo João Antunes.

Esse manezinho, nascido em agosto de 1923, no Alto Ribeirão, à época uma pequena comunidade do Sul da Ilha de Santa Catarina, é uma dessas figuras emblemáticas que não cansamos de ouvir e de estar próximos, tantas as histórias pitorescas e os ensinamentos que sua existência centenária deliciosamente nos proporcionam. 


Trevo do Erasmo – a antiga e distante encruzilhada onde tudo começou no fim dos anos de 1950

 

Em volta da mesa, entre familiares e amigos, a figura central de nossa coluna deixou-se desvendar, de forma leve e bem humorada, lembrando fatos que marcaram sua trajetória, sempre procurando pontuar elementos que nos permitem compreender a evolução social e urbana do sítio onde esteve inserido por muitas décadas. Marcado por uma infância simples, mas com muita fartura em função dos diversos alimentos produzidos por sua família, como mandioca, café, banana, além de outras frutas e verduras, Erasmo visualizava no exemplo e dedicação dos pais o caminho que lhe transformaria, mais tarde, num dos comerciantes de maior respeito de toda a comunidade.

Os estudos formais, como era comum naquele tempo, não foram muitos, mas sua sabedoria lhe possibilitou compreender, como ele mesmo faz questão de frisar que "onde você mais aprende é com as coisas e com as pessoas com quem convive”. O pai, quando ele ainda era criança, abriu as portas da casa e colocou um pequeno comércio de louças de barro, sal, querosene, os primeiros produtos que Erasmo lembra-se de comercializar, ajudando o patriarca no sustento da família. Mais tarde, em 1951, já casado e com dois filhos, dos sete que viria ter com Dona Leonor, abriu seu primeiro comércio. 


 SC 405 – antes um extenso areal, hoje importante eixo de ligação e de comércio do Sul da Ilha

 

O local onde foi se instalar ainda era pouco habitado e ficava numa encruzilhada, que direcionava os que por ela passavam às localidades de Morro das Pedras, Armação ou à Freguesia do Ribeirão, entre outras. Era desses lugares que também vinha boa parte de sua clientela. Seu Erasmo confidencia que muitos não tinham como pagar de imediato as mercadorias que adquiriam.

O dinheiro era escasso e os clientes eram de poucas posses, porém carregados de honestidade e caráter. Aos pescadores, lhes possibilitava que acertassem suas dívidas com a venda da safra da tainha ou da anchova. Por outro lado, com os agricultores, era preciso aguardar que fizessem bons negócios com a venda daquilo que produziam, principalmente o café e a mandioca, raiz essa fortemente utilizada nos engenhos da Ilha de Santa Catarina para a fabricação de farinha.

Como não havia inflação, não cobrava da clientela qualquer acréscimo no valor dos produtos, desenvolvendo dessa forma um relevante serviço comunitário, além de manter, é claro, uma grande fidelidade de toda essa gente ao seu estabelecimento comercial. Precisava se deslocar constantemente ao Centro de Florianópolis, no intuito de adquirir as mercadorias que ali seriam revendidas. Conta que, nessa época, as estradas eram ruins, principalmente o trecho compreendido entre seu comércio e a entrada para o Campeche, hoje avenida Pequeno Príncipe. 

O areal que formava o leito da via muitas vezes dificultava ou mesmo impedia a passagem dos veículos que por ali trafegavam. Inicialmente, o meio de transporte do qual se utilizava era a carroça, substituída mais tarde por uma camionete e, em seguida, por uma Kombi. Com esta última passou a viajar para São Paulo, de onde trazia até mesmo tecidos, um diferencial que o fez se sobressair entre seus concorrentes mais próximos. Ao ser questionado sobre como percebe a Florianópolis atual, Seu Erasmo é categórico em afirmar que hoje as coisas estão melhores do que “em seu tempo”, mas que faltou aos governantes uma visão de futuro. 

Cita como exemplo a situação em que se encontra o Campeche. Afirma que as autoridades, ao invés de se preocuparem em construir largas avenidas que pudessem ligar essa localidade ao restante do Sul da Ilha, deixaram que a mesma fosse toda ocupada por vias estreitas, muitas sem saída, o que dificulta enormemente a mobilidade em toda essa importante região do município. 


 Modernos empreendimentos comerciais fazem parte do contexto da região

 

Quando instalou seu pequeno comércio naquela distante encruzilhada, talvez apostando que o destino pudesse lhe trazer um futuro permeado de sucesso, nem imaginava que um dia aquele lugar incorporaria seu nome e passaria a ser um dos pontos mais conhecidos da região: o “Trevo do Erasmo”. Quem passa hoje pela localidade e vê a pujança daquele pedaço do território da Ilha de Santa Catarina, nem imagina que ali, nos anos de 1950, onde tudo era apenas um grande descampado, pessoas como ele arregaçaram as mangas e auxiliaram sua transformação. A lição que fica de tudo isso é a de que uma cidade não é feita só de ruas, praças, avenidas e prédios, mas, principalmente, de gente determinada e de visão, como Seu Erasmo. 

Com dedicação, trabalho e espírito comunitário, elas ajudam todos os dias a forjar e consolidar a história e a vida de um lugar. Que bom seria se tivéssemos tido mais florianopolitanos como ele!  Por certo nossa Ilha seria um lugar ainda melhor para se viver.

 

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Sobre o autor

Fernando Teixeira

Formado em Arquitetura e Urbanismo (UFSC), mestre em Geociências e Doutor em Educação Científica e Tecnológica (UFSC), natural de Florianópolis. Atualmente tem se dedicado à fotografia.


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